A transcendência através da arte
Já escrevi alguns textos onde cito a tal transcendência, e li outros tantos sobre o tema. Isso porque, durante grande parte da minha vida, busquei entender os motivos que me fizeram tão aficionado por música — a ponto de deixar todo o resto em segundo plano.
Para se ter uma ideia, aprendi a ler partituras e a tocar violão ao mesmo tempo em que aprendia a ler e escrever na escola. O encantamento começou cedo: fiquei impressionado com os “tiozinhos” da igreja tocando nos louvores e desejei fazer aquilo também. Mais tarde, ao assistir ao Metallica no Grammy de 1989, decidi que queria montar uma banda de heavy metal.
A música me seduziu por um sentimento que extrapolava a razão. Naqueles tempos juvenis, eu sequer cogitava uma profissão ou tinha qualquer preferência racionalizada sobre assuntos importantes. Mesmo tendo alguns tios que tocavam instrumentos de forma amadora, a arte — seja música, literatura ou qualquer outra — nunca foi algo valorizado no seio da minha família.
Foi a partir desse desejo genuíno, desse encantamento, que percebi o quanto a música moldou minha identidade. Ela influenciou as roupas que eu vestiria, as pessoas com quem me relacionaria, os lugares que frequentaria e as fontes culturais que buscaria. Mesmo que, ao longo da vida, eu tenha me afastado do senso comum em termos de opinião, não há como negar que aquilo que consumi como arte definiu inúmeras questões pessoais e sociais. O que parecia acaso passou a ditar minha existência e a forma como interajo com o mundo.
Às vezes me pergunto: teria a música me escolhido? Afinal, não há razão plausível para essa predileção tão intensa — e tão específica — pelo heavy metal e suas derivações.
Foi só depois dos quarenta anos, e após a leitura de muitos livros, que compreendi uma razão mais profunda para essa busca: a arte, para mim, tornou-se uma resposta existencial. Todo ser humano busca afirmar sua identidade, encontrar seu lugar no mundo e sentir que pertence a algo. A maioria sufoca esses impulsos por conta da cultura ao redor e das crenças que vai alimentando. O meio social restringe, poda, desencoraja. E assim, muitos se acomodam com o básico, com o trivial. Criar desculpas para o fracasso se torna mais confortável do que enfrentar os sabotadores internos que impedem a realização pessoal.
Cada pessoa possui um chamado. O meu é a música. Mas poderia ser qualquer atividade que me colocasse em estado de fluxo — aquela sensação de perder a noção do tempo enquanto se faz algo com entrega total. Nenhuma outra ocupação eleva meu espírito como ler, estudar, escrever e ouvir música.
No entanto, ao tentar transformar essa paixão em profissão, fui confrontado com a realidade do mercado. Nos anos 1990, o sertanejo dominava o cenário, mesmo sendo uma época rica para o rock com a chegada da MTV ao Brasil. Vieram outras modas, todas muito lucrativas, mas com as quais nunca me identifiquei. Nunca me arrependi de recusar tocar algo que não amo apenas por dinheiro. Preferi fazer qualquer outra coisa — e fiz.
Confesso que, em muitos momentos, quis abandonar a música. Mas em nenhum outro ambiente me senti tão pertencente quanto na cultura underground em que cresci. Bastava um contato com uma música, um vídeo, uma citação — e meu espírito era lançado de volta aos anos 1990, onde o jovem Kako berrava dentro de mim, exigindo ser ouvido. E como ignorar uma voz tão contundente? Quando tento silenciá-la, é como se minha alma se separasse do corpo. É então que volto às composições, aos documentários antigos, às biografias de músicos, às atividades artísticas que tantas vezes considerei obsoletas.
Não posso dizer que fui malsucedido em outras profissões. Trabalhei como assistente administrativo, sustentei minha família, cresci como indivíduo. Mas a única forma de transcender, no meu caso, é fazendo arte.
E o que seria essa tal transcendência? Por que ela importa?
Quase todas as religiões falam da imortalidade da alma como base da espiritualidade. Mas o que pode ser maior exemplo de existência além da vida corpórea do que a imortalidade artística? Homero, Bach, Beethoven, Dante, Shakespeare, Rafael, Michelangelo — todos continuam vivos porque suas obras atravessaram séculos. Nem todos foram reconhecidos em vida, e isso é difícil para o ego, que anseia por aplausos. Mas se há uma motivação legítima para investir tempo e energia, é a de criar algo que sobreviva ao corpo.
Todo espírito busca a imortalidade. O meu não é diferente. Por isso escrevo, componho, registro. Porque quando meu tempo se extinguir, o que restará será minha obra.
Tudo o que existe por obra humana existiu antes na mente de alguém. Portanto, após a morte do corpo, uma forma segura de continuar existindo é habitar o imaginário das gerações futuras — com meus textos, minhas músicas, meus registros. Para isso, nenhum esforço é desmedido. Nenhum sacrifício é em vão.
Pela arte — pela música, literatura ou qualquer outro formato — a busca pela transcendência é minha razão de ser. Não busco riqueza, pois sou um homem de gostos simples. Tampouco anseio por fama, pois não creio que o mundo esteja interessado no que tenho a oferecer agora. E tudo bem. Não quero seguidores. Não trago uma filosofia que inflame revoluções. Só quero deixar um rastro — um vestígio — de que estive aqui.
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