Gratidão ou desculpas?

Neste Dia dos Pais, estando incluso nas celebrações da data, tiro um momento para “pôr no papel” uma espécie de confissão, cujo tema tem ocupado minhas reflexões na última semana e, de certa forma, remete a um sentido mais amplo de paternidade.

Creio já ter citado meus “filhos feios” artisticamente ao mencionar essa expressão em um texto anterior, no qual falava sobre algumas músicas que gravei mas não publiquei em lugar algum. O motivo para não divulgar tais trabalhos é um amálgama de covardia e falso perfeccionismo.

Não há dúvidas de que, primeiramente, eu sou um covarde por natureza. Não que tenha fugido de embates físicos ou verbais ao longo de minha história — muito pelo contrário. Consegui, com a maturidade, desenvolver uma personalidade que sequer suscita esse tipo de disputa, já que pouquíssimas coisas no mundo me são tão caras a ponto de motivarem uma briga física ou um debate verbal mais acalorado. Até porque, para a segunda hipótese, sequer haveria um oponente à altura para discutir sobre os temas que considero relevantes.

Minha covardia se manifesta no âmbito artístico e em termos de caráter, que, em última linha, acabam se influenciando mutuamente.

Eu não tenho medo da crítica de terceiros, e não é esse o motivo que me fez reter minha produção musical. Até porque, não é que eu tenha terminado um trabalho e ficado com receio de lançá-lo. Minha procrastinação age antes da obra ser finalizada.

Procrasto, esse ser mitológico que existe para testar as virtudes dos seres humanos — como coragem, determinação, resiliência e objetividade — costuma colocar pequenos empecilhos ao longo do caminho e conta com a ajuda de seu pai, o Tempo Cronológico (Cronos), para auxiliá-lo em suas tarefas de sabotagem.

Assim, quando entrei em “estado de fluxo” criativo e alinhei a energia cairótica (Kairós), ao me deparar com algum evento como quebra de cordas durante o processo, falta de energia elétrica, pane em algum hardware ou software, eu deixava as tarefas inconclusas e era levado a experimentar novos equipamentos, programas ou formações musicais diferentes, abandonando assim a obra inacabada.

Neste meio tempo, Procrasto vencia Kairós, e o que ficava era o acúmulo de trabalhos pela metade. Se por um lado continham aspectos relevantes, por outro apresentavam elementos improvisados ou com registros desleixados — principalmente na combinação de timbres, nas letras e nas linhas vocais.

Quando uma dessas faixas é reproduzida, qualquer ouvinte, por mais despreparado tecnicamente que seja, consegue perceber tais desleixos na produção. As raras exceções são as versões de Guerra e Mãos Nuas da Heavinna, lançadas em 2018 no single Preto & Branco, e as versões de Dark, Flame and Blood e Freezing War da Evocation, de 2015. Os demais trabalhos estão muito aquém do aceitável.

Por mais que tenha buscado me alinhar com as energias criativas, buscando na neurociência, no ocultismo e na filosofia as ferramentas necessárias para me conectar com as “entidades” criadoras, existe em meu caminho um muro muito denso e amplo que, nas últimas quatro décadas, tem bloqueado minha conexão com esse “mundo paralelo” em que consigo atingir a plenitude de meu potencial artístico.

Essa barreira começou a ser construída ainda na minha infância, quando me inspirei nos “tocadores de violão” da igreja de meus avós e decidi aprender a tocar o instrumento. Os desenhos animados me apresentaram música clássica em suas trilhas (Tom & Jerry, Pica-pau, Papa-léguas, entre outros). Isso não foi motivo tão forte para despertar alguma força contrária, mesmo que meus avós tivessem receio em relação à programação televisiva.

Foi o Metallica, em sua apresentação na premiação do Grammy de 1989, que causou reações mais contundentes por conta da mudança radical no visual e no consumo musical. Ao longo do meu desenvolvimento técnico inicial, sempre convivi com comentários depreciativos e críticas oriundas de meus avós. Para eles — principalmente para minha avó — a música era um hobby, e não uma carreira de verdade. Então, com muita perspicácia, eles conseguiram plantar a semente que a mídia e a sociedade em meu entorno se encarregaram de regar e adubar.

Gratidão

A virtude que mais valorizo é, sem dúvida alguma, a gratidão. Qualquer pessoa que consiga construir alguma ponte sobre um abismo que não conseguimos suplantar com nossas próprias forças merece receber tal consideração de nossa parte.

Entretanto, certo de que meus avós foram motivados pelo amor ao me adotarem e cuidarem de mim até que eu completasse dezesseis anos, foram eles que projetaram este muro que me impede de avançar. Minha avó se opôs à minha ida para Santa Catarina para tocar em um festival de black metal com a Evocation. Isso motivou um rompimento definitivo entre mim e meu pai biológico, que, atendendo a um pedido dela, se recusou a me ajudar a chegar ao local do evento.

Foi a primeira vez que senti raiva de verdade. Estava com dezoito anos, trabalhava em uma marcenaria até a exaustão e recebia muito pouco dinheiro por isso. Quando precisei de ajuda e fui humilde para pedir — até mesmo implorar — não fui atendido por aquele que mais deveria me ajudar. Poucas vezes senti tanto ódio quanto naquela primeira vez. Por anos, fantasiei diversas formas de arrebentar a cabeça do Sadi (meu pai) com uma pedra, um taco de beisebol ou uma barra de ferro enquanto me lembrava daquele episódio.

A gratidão em relação aos meus avós durou ao longo da vida deles, me impedindo de progredir na música, pois jamais me vi afastado fisicamente deles. Recebi convites para ir a outros estados — e até outros países — para tocar e seguir a carreira como músico profissional, mas ficava preso ao endereço Rua Dona Cecília, 1251, porque não queria ser ingrato com aqueles que cuidaram de mim quando eu era um bebê indefeso.

Entre seguir uma carreira musical e um emprego formal, optei por priorizar o segundo, mesmo a contragosto. Isso gerou sofrimento, mas ao menos aliviava minha dívida de gratidão e me livrava da culpa.

Com a morte de meu avô, em meados de 2010, após passar noites no hospital ao lado dele, parecia que os laços estavam afrouxando e minha dívida próxima de ser paga. Sua ausência nos anos seguintes me jogou na escuridão da depressão. Foi como se eu pudesse ir a um local onde me aguardavam há tempos, mas quando cheguei lá, estava de mãos abanando e em dívida com seus habitantes. Ao invés de me abraçar e me consolar em minha aflição, encontrei um ambiente frio e, de certa forma, hostil. O cenário musical não era exatamente o que esperava. Porém, isso não me impediu de avançar.

Em 2013, quando estava trabalhando com a Xaparraw e a história da Evocation parecia se repetir, mais uma vez tinha um evento em Santa Catarina para me apresentar. Dessa vez, mesmo deixando minha esposa grávida em casa, viajei para o estado vizinho e estava prestes a quebrar a maldição, quando, por capricho do destino, um caminhoneiro (profissão de meu pai) jogou a van que nos levava ao festival para fora da estrada, causando escoriações e lesões graves nos integrantes da Xaparraw e Leviathan.

Tive cerca de vinte e quatro horas para refletir sobre o assunto enquanto aguardava a condução que nos levaria de volta para Cachoeirinha e Porto Alegre, e os feridos eram atendidos no hospital de Lages/SC. Naquela ocasião, decidi abandonar os palcos e até desistir da música, pois corri o risco de não conhecer minha filha ao morrer de forma abrupta em um acidente de trânsito.

Desculpas

Como não conseguia desistir da música de uma vez por todas e já estudava produção musical, decidi trabalhar apenas em estúdio e ficar fisicamente próximo à minha família. Para muitos, essa atitude poderia parecer uma saída honrosa. Afinal, daqueles jovens que conheci e formaram bandas, alguns poucos seguiram suas carreiras; a grande maioria desistiu e se conformou com profissões alternativas.

Entretanto, como acalentar um espírito alimentado com delírios de grandeza, cujos devaneios eram sobre reconhecimento e grandes conquistas com a música? Como aceitar que aquela saída do óbvio, do comum, ordinário e medíocre já não era mais possível?

Mais uma vez, eu me vi sentado à mesa e sendo confrontado por Procrasto, que me olhava nos olhos e se vangloriava de colocar cada pedra, cada armadilha em meu caminho. E eu, sendo incapaz de superá-las, tropeçava e caía em cada uma delas.

Vi claramente que o Universo havia trabalhado arduamente para colocar as coisas em seus devidos lugares para que minha música se tornasse viável. Um estúdio, que outrora contava com uma sala projetada e equipada com equipamentos caros demais para serem adquiridos, hoje cabia em um notebook. Não havia desculpas para não dedicar algumas horas diárias para criar música, mesmo tendo uma profissão formal alternativa.

Mas Kairós havia desistido de ajudar por conta do meu descaso, e Cronos se juntou a Procrasto para debochar de minha covardia.

Por fim, se a gratidão que tanto prezo foi a parte que me deixou vulnerável, a covardia foi o defeito que venceu a respectiva virtude. Mesmo não dando a mínima para a opinião alheia e sem esperar reconhecimento externo ao meu trabalho, ao me desenvolver para que tais influências não interferissem no meu desempenho, acabei desconsiderando um insumo essencial para um artista: o público.

Sem ele, não haveria cobranças, e Procrasto poderia se regozijar da ausência de prazos e demandas que originassem pressão.

Em suma, as músicas que compus e gravei acabaram representando uma espécie de cela da qual fui incapaz de sair nessas últimas duas décadas, principalmente. Não dei uma forma definitiva para músicas como Teia da Aranha, Anjo Caído, Medo e Sombras, e as versões para as demais canções também não representam com precisão o que realmente sou capaz de fazer musicalmente.

Assim, invento desculpas para não gravar o que precisa ser registrado, atribuindo a ausência de algum equipamento ou supervalorizando qualquer defeito em um instrumento ou dispositivo.

No jogo da vida, minha experiência musical me ensinou que cada habilidade que desenvolvemos é confrontada com um desafio que a teste. Cada virtude é oposta por um defeito. Neste ínterim, algumas entidades criadas por nós mesmos acabam sendo alimentadas pela energia que desperdiçamos ao fugir de nossos propósitos e deixar que nossas valências atrofiem pela falta de clareza, preguiça ou medo.

Por algum motivo, toda a cultura alimentada por milênios de vida humana na Terra acabou por alimentar seres um tanto bizarros como os que citei ao longo da postagem. Entretanto, eu ainda conheço a linguagem mitológica para separar o que são figuras de linguagem ou parábolas do que é a realidade prática — mas isso pouco tem valor quando a sociedade em torno está presa nessas crendices que cada vez mais geram influência no cotidiano das pessoas e as impedem de desenvolver seus verdadeiros potenciais.

Como tudo está conectado, é quase impossível superar determinados obstáculos. Sou consciente de que não fui capaz de tomar posse daquilo que realmente me pertence e acabei me acostumando com as migalhas que uma existência fugaz me forneceu.

Abaixo as músicas citadas ao longo do texto:





Comentários

  1. Penso que seja comum do ser humano, culpar a tudo e todos por nossos fracassos, de simplesmente não sermos mais fortes que nossos problemas, também não é culpa nossa que o país ofereça poucos recursos, o que dá para fazer é continuar fazendo até morrer, olhando por outro ângulo, fama, carreira e fortuna são coisas totalmente ilusórias e já temos ao nosso lado o que precisamos para inspiração e força, como família, amigos, bens materiais suficientes, creio que a função de um artista seja apenas transmitir essa inspiração e força aos que ainda se encontram na escuridão ou desespero, mesmo sem receber nada em troca. Nesse ponto, tem feito seu papel, sua música vai tocar algumas pessoas e motiva-las a seguirem adiante em suas vidas.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Creio que o texto trouxe algumas reflexões e me alegra ler seu comentário. Espero que leia os demais textos e que eles continuem motivando seus comentários, pois este espaço foi criado exatamente para este tipo de conversa.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Broken

Grunge, black metal e MTV

Adeus, Ozzy!