Rotina, arte e a busca por sentido

Você é daquelas pessoas que acorda cedo de segunda a sexta-feira, pega um transporte qualquer e se desloca de casa para um lugar onde deixa cerca de dez horas do seu dia em troca de um salário?

Ou talvez tenha um cômodo em casa transformado em estação de trabalho, onde fica à disposição de uma empresa vinte e quatro horas por dia?
Com esse salário, você paga contas, compra comida, roupas, eletrodomésticos — ou qualquer bugiganga inútil que pareça atraente na internet?
Começa cada dia torcendo para que ele acabe logo, cada semana esperando pelo fim, cada ano aguardando pelas férias?
Reclama que o salário é insuficiente, o chefe é um otário, os colegas são umas “malas”, a família é um tédio... e que há poucos momentos que realmente valem a pena — talvez assistindo a um filme, maratonando séries, rodando o feed das redes sociais ou jogando?

Quantas vezes você sonhou com um salário maior, um emprego melhor, uma família perfeita, momentos de qualidade como uma viagem ou algo realmente interessante?

Pois quero lhe informar: não é o salário baixo, o chefe chato, o transporte desconfortável, os colegas enfadonhos, a família entediante ou qualquer outro aspecto o verdadeiro problema. O problema é você.
Em vez de listar tudo que não te agrada na vida, que tal — ao menos uma vez — listar o que realmente deseja? O que lhe dá prazer?
Ou melhor: quem você quer ser?

Já parou pra pensar que você é o único e verdadeiro responsável por essa vida medíocre que vive criticando?

O que você espera com essa atitude? Piedade? Atenção? Empatia?

Ou será que você simplesmente é um porre como pessoa e tem até mais do que realmente merece?
Por que acha que os outros precisam suportar seu mau humor, ter pena de alguma desventura que só aconteceu com você, dar atenção às suas mazelas e reclamações?

Na verdade, será que você realmente merece atenção de alguém? Quanto? E por quê? 

Não importa o seu humor ou os fatos que vivenciou: haverá dias quentes, frios, secos, chuvosos. Cada um deles será único, com um nascer e um pôr do sol que podem ser admirados — ou ignorados.

Um deslocamento para o trabalho pode ser uma oportunidade de apreciar o céu, as flores, as pessoas, as paisagens. Mesmo repetitivas, pertencem a um momento único, que jamais se repetirá e será percebido de forma singular.
É você quem escolhe olhar pela janela, para o celular ou cochilar durante a viagem. Pensar no que precisa fazer, nas contas que tem para pagar... cada um faz isso à sua maneira.

É nessa condição única de existência, nessa forma intransferível de presença, que podemos nos isolar do que não queremos e focar no que realmente importa. Mas, para isso, é preciso saber distinguir uma coisa da outra.

Falando da minha posição em particular, há inúmeros motivos para me deixar corromper pela realidade ao redor — e confesso que fiz isso por muito tempo.

Entretanto, tive a sorte de despertar para a arte muito cedo. Passei por um longo e demorado período de maturação até descobrir que tudo ao meu redor é criação minha.
Se decido apagar pessoas da minha vida, basta não ir onde elas estão. Se estou insatisfeito com qualquer uma dessas coisas que representam agruras cotidianas, é só mudar.
Mudar de emprego, de rotina, de relacionamentos, de endereço... qualquer coisa.

Mas será que eu teria potencial para mudar realmente tudo, se quisesse ou precisasse?

Busco constantemente na literatura as respostas para perguntas que sequer formulei.

Esses autores — em sua maioria mortos — já percorreram o caminho, já refletiram, experimentaram e trabalharam em muitas das questões que também me atravessam.
Da mesma forma, não preciso reclamar das mazelas do dia a dia. Posso escrever um texto ou uma música sobre isso.

Se um evento, sensação ou experiência não for relevante o suficiente para se tornar arte, então não merece minha atenção por mais tempo do que o momento em que ocorre.

Essa última frase dita o tom da minha existência de tempos para cá.

Se algo não merece se tornar arte, vai para uma lista secundária de prioridades — com tendência ao esquecimento.
O simples fato de poder fazer arte já me obriga, de forma muito singular, a me apartar de certas rusgas e dissabores do cotidiano.
O dinheiro pouco importa. Outros aspectos que parecem nortear as pessoas, para mim, são meros complementos.

O que está por trás é a consciência de que certas coisas e pessoas são como são. No máximo, servem de matéria-prima para algo: um movimento político, cultural, um mercado de trabalho, uma rede de consumidores, referências artísticas, relacionamentos etc.

Desde já, quero retirar qualquer aspecto de frieza ou desdém que possa ser sugerido no parágrafo acima.

Ser artista também é sentir dor, decepção, fraqueza, impotência, remorso, tristeza.
Mas, assim como o cheiro das flores, das pessoas, as cores das paisagens e os sons em geral, esses elementos podem ser transformados e manipulados para se tornarem algo mais elevado: uma música, um poema, uma escultura, um livro, um filme ou qualquer outra manifestação artística.

Essa percepção de mundo — orientada pela arte, mas única e intransferível — forma um universo paralelo, onde os valores são diferentes e a forma de enxergar o mundo muda radicalmente conforme nos transformamos ao longo do tempo.

Se a maioria existe para esperar o fim do dia, o final de semana, as férias, e “matar” o resto do tempo em troca de um salário ou gratificação, o artista busca a transcendência.

Busca continuar existindo após a própria morte — como Mozart, Shakespeare, Michelangelo, entre tantos outros.
Seria hipócrita se dissesse que não fico frustrado por não receber o incentivo das pessoas próximas, o reconhecimento do público em geral, e por precisar levar uma vida “comum” em paralelo à existência como artista.
Entretanto, como as coisas tendem a ser como são, percebo um enorme valor em me manter conectado à realidade mundana.

Dela, posso extrair os insumos — não só para minha arte, mas para o desenvolvimento contínuo do meu caráter.

É preciso existir intensamente para transcender e continuar existindo após a morte.

Essa busca é válida: direcionar a existência e o aperfeiçoamento para criar uma obra que a perpetue, que impressione e influencie as gerações seguintes.
Esse é o meu propósito, minha missão, a razão da minha existência, meu norte.
E ninguém é capaz de mensurar o tamanho disso, porque não conseguem ver suas proporções do ângulo que eu observo.

Nem eu mesmo consigo contemplar a amplitude do que está prestes a se tornar realidade.

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