Nostalgia ou incapacidade de viver no presente

 

Quando olho para o passado e me recordo das pessoas que se foram — meus avós, tios, tios-avôs, primos, conhecidos, ex-colegas de escola e trabalho — penso no quanto foram relevantes (ou não) para a minha vida e no espaço que deixaram vazio. Mas essa suposta lacuna sequer existe. Como a natureza nos mostra, o vazio não existe de fato, pois o ar costuma ocupar os espaços onde havia um objeto ou uma pessoa. Entretanto, pessoas não substituem pessoas, pois cada ser humano é único na perspectiva de outro indivíduo.

Diante de um dilema aparentemente fútil, esconde-se uma armadilha traiçoeira e muito eficaz nos dias atuais. Quem acaba caindo nela — e todos caem em algum momento — é acometido por depressão ou ansiedade. Não à toa, esses são os grandes males do novo milênio. Quem teria armado essa armadilha? A psiquiatria, os psicólogos, a indústria farmacêutica, os políticos, os empresários gananciosos, os líderes religiosos, a indústria do entretenimento — ou todos juntos? A resposta é irrelevante. Afinal, um único indivíduo é incapaz de combater tal malfeitor.

Agora, vamos olhar embaixo da cama em busca do “monstro”, abrir o armário e encarar os esqueletos? Os vilões citados no parágrafo anterior são abstrações. Mesmo que você possa citar nomes, apontar grupos e listar entidades, todos eles continuarão sendo meros fantasmas em sua mente. O poder deles está no ato de temê-los, citá-los e dar importância ao que podem fazer. É óbvio que nossos corpos são vulneráveis, nossas mentes frágeis e nosso humor volátil, mas basta olhar para as perdas mencionadas e constatar que ainda estamos vivos — e, portanto, capazes de criar uma fortaleza inabalável onde estaremos seguros de qualquer ataque. Porém, tal empreitada requer uma série de habilidades simples de executar, mas difíceis de aprender.

Talvez a principal habilidade a ser desenvolvida — ao menos para mim — seja aprender a hierarquizar os elementos do dia a dia. Por exemplo: medir a importância de ir ao trabalho ou ficar em casa, ter um salário depositado na conta bancária ou passar tempo de qualidade com a família. Pode parecer estranho pensar nisso, já que somos incentivados a equilibrar essas coisas, mas reflita por um minuto. Embora o exemplo citado seja simplório, é crucial ter bem claro o valor de cada aspecto da vida.

Muitos da minha geração preferiam carros, motos, roupas, casas e outros bens materiais para se sentirem realizados. Eu optei por coisas imateriais, como a música e, mais tarde, a literatura. Mesmo que não passe horas do meu dia lendo ou trabalhando com música, algum espaço na minha agenda diária é dedicado a essas atividades. Da mesma forma, trabalho oito horas por dia em um emprego convencional e reservo uma hora para estudar o conteúdo do curso de design musical da universidade.

Acredito que, em geral, as pessoas tendem a dedicar de 8 a 10 horas a um trabalho que lhes garanta a subsistência. Algumas reservam até 4 horas diárias a um curso técnico ou superior. Concordo que resta muito pouco tempo para descansar e fazer outras coisas. Contudo, é nessa escassez de tempo que as armadilhas são colocadas. Imagine passar quase metade do seu dia em um local que você odeia, rodeado de pessoas que despreza. Pois essa é a realidade de muita gente ao meu redor. Ou então, sacrificar 4 horas frequentando uma instituição de ensino apenas para obter um diploma e um salário um pouco melhor. Novamente, conheço um número considerável de pessoas que se encaixam nessa descrição. Em comum, esses indivíduos vivem esperando a hora de ir para casa, de tirar férias ou de se aposentar. Nunca estão plenamente vivendo o presente, pois trabalham em um local ou profissão que não gostam, ou estudam algo que não lhes interessa realmente.

Confesso que ter como objetivos bens materiais como carros, roupas e imóveis seria bem mais simples do que se dedicar à arte. Entretanto, o prazer de viver em um estado criativo o máximo de tempo possível é inebriante. É quase como se embriagar com bebida alcoólica ou praticar esportes radicais. Ao contrário do que muitos pensam, dedicar-se à arte não é exatamente passar o dia inteiro escrevendo, gravando ou tocando um instrumento, mas sim retirar das atividades comuns do cotidiano os insumos necessários para transformar em uma obra — seja música, literatura, escultura, arquitetura ou pintura. Afinal, a arte pela arte não passa de masturbação artística, gerando obras descartáveis, sazonais ou superficiais.

Enganam-se aqueles que acreditam que o simples desenvolvimento teórico e técnico é suficiente para produzir algo cativante e digno de ser imortalizado. A arte carece de pessoas comuns que vivam vidas simples no estado da arte. Fazem parte desse ambiente os dias chuvosos, as enfermidades, desavenças, desilusões, revezes, intrigas, equívocos e todas as mazelas às quais estamos sujeitos. Contudo, é desse contexto que podemos extrair a matéria-prima passível de ser transformada em obras-primas. Independentemente do reconhecimento, da aceitação ou do retorno financeiro que o artista recebe, viver no estado da arte já é, por si só, uma recompensa. A partir do momento em que isso ficou claro para mim, não houve sequer um único dia em que eu não tenha sentido entusiasmo em algum momento — mesmo naqueles dias em que parece que nada dá certo.

Se você, caro leitor, é daqueles que se sente infeliz no relacionamento atual, no emprego ou com seu estágio de desenvolvimento, lamento informar que nenhuma de suas conquistas idealizadas será tão gratificante quanto imagina. Guardadas raríssimas exceções, pessoas infelizes em seu cotidiano, por mais que expressem o desejo de melhorar, tendem a culpar o ambiente, as pessoas e outras circunstâncias por estarem frustradas consigo mesmas. Mesmo que mudem radicalmente toda a realidade ao seu redor, continuarão insatisfeitas — ou até mais. Ter clareza do que realmente se gosta e manter-se em movimento nessa direção é o que gera o entusiasmo que fornece a energia e a motivação para encarar cada dia. Ao sair de casa diariamente — ou mesmo permanecendo onde está —, tendo em mente que só existe o presente e que ele deve ser encarado com boa vontade e otimismo, é que se vive a plenitude que a existência merece.

Estudando o módulo de história da música, já que sou entusiasta dessa arte, é possível perceber que Beethoven — talvez o maior nome da música de todos os tempos —, mesmo tendo atingido o ápice com sua arte, não escapou de nascer em uma família cercada por infortúnios, morte, doenças e desilusões. Ele mesmo ficou surdo no momento em que atingiu a plenitude de seu desenvolvimento artístico. Ou seja, um gênio não pode viver inteiramente sua arte sem sofrer. O mesmo ocorreu com J. S. Bach, Mozart, Paganini, Chopin, entre tantos outros. Mesmo assim, atingiram a imortalidade artística e transcenderam os padrões ordinários da existência, sendo lembrados séculos após suas mortes físicas. Agora, com os luxos e as facilidades que os tempos atuais oferecem, seria justo encarar a vida com pessimismo, desânimo ou insatisfação?

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