O Coringa e sua mensagem oculta

Estava assistindo ao filme Coringa (2019), dirigido por Todd Phillips — uma tarefa que adiei por seis anos — e cheguei a algumas conclusões um tanto polêmicas. Desde já, adianto que o que mais me chamou atenção no longa não foi seu aspecto artístico. Para uma obra que alcançou tamanho sucesso, elementos como fotografia, roteiro, atuação, ritmo e trilha sonora foram, em minha percepção, tratados com certa negligência. O que realmente merece destaque é o apelo que o filme exerce sobre os jovens e a repercussão que teve entre eles. Inclusive, o próprio algoritmo da plataforma de streaming utilizada para assistir Coringa revelou a mensagem subjacente da obra ao sugerir, como conteúdo relacionado, um documentário sobre Charles Manson.

A proposta de um Coringa sem Batman soa como uma espécie de “ode ao vilão”. Se em O Cavaleiro das Trevas o antagonista do Homem-Morcego foi elevado a um patamar artístico brilhante pela interpretação de Heath Ledger — que fez emergir um personagem genial a partir de um ator até então mediano —, na versão de 2019, tanto o ator quanto o personagem permanecem na mediocridade. Esse cenário, paradoxalmente, faz com que a mensagem do filme salte para fora da tela, ao menos para aqueles que possuem alguma sensibilidade filosófica.

Ao mergulhar na psique do personagem, percebe-se que os momentos positivos — como a apresentação em um show de stand-up, o namoro com a vizinha e o convite para um talk show — são delírios provocados por distúrbios mentais. O que há de concreto são as surras, humilhações, assassinatos de agressores, de um colega de trabalho, da própria mãe, culminando na execução do apresentador de televisão em rede nacional. Soma-se a isso a revelação de que o protagonista foi adotado, sofreu abusos e apresenta episódios de riso involuntário. Esses elementos constroem uma narrativa de revolta contra os ricos e contra o sistema social, transformando-o em um herói popular para agentes do caos — retratados no filme como pessoas comuns à margem da sociedade.

Com essa referência em mente, recordo-me da letra da música Guerra, que escrevi assumindo o papel de instigador dos menosprezados, convocando-os à luta. Reconheço que essa não é uma ideia original, mas sim ecos de uma cultura alternativa que reverberaram até mim. É aí que se estabelece a conexão com Charles Manson e seu “Helter Skelter”. Não por acaso, o algoritmo do serviço de streaming indicou o documentário sobre o “guru hippie” dos anos 1960 logo após Coringa. Mais uma vez, a arte se mostra como instrumento de influência social, inserindo ideias deformadas de forma artificial e maquiada, para que pessoas em momentos de instabilidade as absorvam e reajam. Vi jovens irem à escola maquiados como o Coringa, tentando inserir episódios de maus-tratos e abusos em suas narrativas pessoais para justificar atos de violência e rebeldia.

Não me coloco como paladino do bom senso, tampouco acuso os autores da obra de irresponsabilidade, pois reconheço que minha própria biografia contém pensamentos semelhantes aos apresentados no filme. Acredito que é natural — e talvez necessário — que uma parcela da população atravesse fases de confusão, revolta e autodestruição. Desses momentos surgem heróis, superações, redenções e o contraste entre luz e sombra, tão essencial à arte. No entanto, para quem convive com alguém que enfrenta esse tipo de sofrimento — seja um filho, familiar ou amigo —, a situação está longe de ser poética. Não é arte; é dor.

É preciso compreender que a arte é uma via de mão dupla. Ao usarmos nossa capacidade criativa para expressar sentimentos e ideias, não podemos ignorar as consequências que podem advir disso. Em Guerra, ao convocar o ouvinte à rebelião contra seus opressores, ofereci a liberdade para que ele definisse a intensidade de sua revolta e o alvo de sua indignação. Essa abertura gera uma infinidade de questionamentos e reflexões. Eis o poder da arte: ela pode ser força propulsora tanto para o bem quanto para o mal. Mas até que ponto o artista é responsável por isso? Pode ele ser responsabilizado ou está isento por simplesmente criar?

Nenhum artista, por mais brilhante que seja, consegue moldar o mundo inteiro à sua vontade — mas pode causar grande impacto. Isoladamente, a mensagem de uma obra de arte pode parecer inofensiva. No entanto, se encontrar eco em pessoas vulneráveis, pode tornar-se o estopim, o gatilho ou a gota d’água que inicia um movimento revolucionário, disruptivo ou catastrófico.

Todo artista carrega consigo esse gene, essa propensão — talvez até esse karma — de influenciar rumos, muitas vezes de forma inconsciente. O material para criar histórias, teses e filosofias está na realidade ao redor. Quando se estabelece um fluxo comunicativo entre o artista e seu público, ambos se retroalimentam, fazendo o movimento crescer, se transformar ou colapsar. É por isso que dou tanta importância à arte: ao ler obras literárias diariamente, trabalhar com música e escrever minhas composições. Esse flerte com a energia criativa, esse poder de tocar e transformar, é o que me motiva a estudar tudo o que estudei — e sigo estudando — sobre música, a ponto de iniciar um curso de design musical aos 47 anos de idade.

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